Dicas Médicas

terça-feira, agosto 09, 2005

Dona Flor e sua mama


Em janeiro desse ano durante um estágio de Cirurgia Geral do último ano de Medicina conheci dona Flor. Ela tinha seus 56 anos, aparência de dona de casa cansada, cabelos desarrumados e vinha ao Hospital Universitário acompanhada de sua filha em uma tarde sem nada de especial.

Ao iniciar a entrevista perguntei a ela o que sentia, o que a trazia até ali e ela me respondeu que não sentia nada e que vinha por insistência da filha. Já sentada para o exame físico Flor trajava em uma tarde quente uma blusa com mangas compridas e pude observar a inspeção um aumento de volume do lado esquerdo do peito.

Ao retirar a blusa para o exame qual foi a minha surpresa que ficou inevitavelmente estampada em meu semblante: a mama de Dona Flor era a cena mais horripilante que havia visto em minha vida! Possuía 10 cm a mais em relação ao lado esquerdo, possuia fissuras (rachaduras), estava hiperemiada (vermelha), quente a palpação, havia áreas de retração como casca de laranja e sem aoréola, isso mesmo pasmem. A aoréola (bico do seio) havia caído há 1 mês. Como se não bastasse, uma secreção esverdeada abundante e fétida percorria as fissuras e o local no qual estaria a aréola .

Chamei meus colegas para ver a cena e todos ficaram chocados. Prossegui o restante do exame físico, fiz a solicitação dos exames laboratoriais complementares e chamamos (eu e o residente) o oncologista para avaliação pois ela ficaria internada devido ao estado geral comprometido.

Havia chegado o momento de conversar com dona Flor, com a família (filha) e falar sobre sua situação e nossa conduta. Antes de voltar a sala onde estava Flor, sua filha me abordou perguntando se o diagnóstico era de câncer, respondi que sim, que infelizmente ela estava no estágio IV de câncer de mama, o mais avançado e que viveria em média 24 meses. A filha com a feição angustiada me pediu por favor para que não contasse a sua mãe o diagnóstico, expliquei que ela poderia falecer em breve e seria melhor que soubesse de sua condição clínica, finalmente ela aceitou.
Ao dar notícia pra Dona Flor, que reagiu de forma apática, perguntei porque ela havia ficado tanto tempo sem vir ao médico e ela me respondeu que há 1 ano aquele seio havia" inflamado "e ela havia ido em uma igreja e recebido uma oração de cura feita pelo pastor e ela acreditava estar curada, por isso acreditava que aquela "inflamação" desapareceria em breve, isso a fazia esconder o quadro da família e não havia motivo pra procurar o médico.

Ela internou no final de meu plantão e conversando com o oncologista em outra oportunidade recebi a informação que dona Flor havia falecido após duas semanas de sua internação por conta de um sangramento como complicação da quimioterapia e de sua condição clínica.

Há muitos aspectos a serem discutidos nessa história: prevenção, complicações do tratamento, nível intelectual e cognitivo da população, como a família e o paciente enfrentam o câncer, aspectos éticos do diagnóstico médico, influência religiosa. Comentarei por agora apenas que sua história me marcou pois representa o quanto somos ainda vitimados pela falta do desenvolvimento sócio-cultural-intelectual. Em pleno século XXI uma mulher morre aos 56 anos sem idéia de seu estado e sem saber que seu mal é curável se detectado precocemente, milhões de reais investidos em exames complementares e no desenvolvimento tecnológico da Medicina se rendem ao analfabetismo social de nosso povo.

2 Comentários:

  • Seu texto ficou ótimo. Com ares de conto. A ignorância é a primeira das fases do pecado...hahah
    Por isso é importante termos blogs, folhetins, folhetos, programas de tv etc que versem sobre saúde.
    Ainda conhecemos pouco sobre nós mesmos.

    By Blogger Luiz Roberto Lins Almeida, at agosto 09, 2005  

  • Realmente é chocante que hoje ainda aconteçam casos como esse. Infelizmente, a maioria da população brasileira ainda é refén da própria ignorância.
    Parabéns pela matéria amiga.

    By Anonymous Anônimo, at outubro 25, 2005  

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